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domingo, 19 de dezembro de 2010

Cântico Negro - José Régio

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros 

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!" 

Eu olho-os com olhos lassos, 

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 

E cruzo os braços, 

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta: 

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 

Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde 

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 

Redemoinhar aos ventos, 

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens, 

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 

Para eu derrubar os meus obstáculos?... 

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 

E vós amais o que é fácil! 

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas, 

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos, 

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 

Mas eu, que nunca principio nem acabo, 

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições! 

Ninguém me diga: "vem por aqui"! 

A minha vida é um vendaval que se soltou. 

É uma onda que se alevantou. 

É um átomo a mais que se animou... 

Não sei por onde vou, 

Não sei para onde vou 
-
Sei que não vou por aí!


dito por João Villaret

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